Depois de trinta quilômetros de estrada de barro, onde o carro teve de seguir devagar por causa dos buracos, chegaram ao descampado que, segundo Maicon, seria o cemitério ideal para os chantagistas. Nenhum morador a léguas de distância, nenhuma lavoura, nenhuma criação de gado, apenas o solo infértil e solitário.
O professor tinha certeza absoluta de que terminaria atrás das grades. Em vez de se atenuarem, seus problemas se multiplicavam com o passar das horas. Primeiro a sua crisezinha existencial, depois o sentimento de culpa, depois o perigo da desmoralização pública e agora um duplo homicídio. Ou cúmplice disso, na melhor das hipóteses.
Maicon garantiu que deletaria o vídeo, as duas cópias que encontrou, nada faria para prejudicar o professor, que é isso?, só queria que o acompanhasse até o fim da jornada. Não disse como localizou Jorge e a garota, nem como tirou a vida deles, mas deixou escapar que não agiu sozinho e não utilizou lâminas ou armas de fogo — era contra essas coisas.
— Você matou os dois a pauladas?
— Mais ou menos.
Psicopata!, xingou mentalmente o professor. Seus colegas tinham razão quando tentaram expulsá-lo da Universidade. Como passou pelos testes psicológicos? Ah, não são muito difíceis de burlar. Ninguém conhece um ser humano por inteiro, mesmo quando tem a oportunidade de observá-lo de perto. Maicon não era seu amigo, não era amigo de ninguém. Ao contrário do que afirmava, não se envolveu nessa história e fez o que fez com o intento de ajudar. Era explícito o seu desejo de repreender, de punir a má conduta do ex-professor.
— Agora vem a parte chata. Cavar. Não sei se o senhor notou, mas tenho duas pás lá atrás com os defuntos. O chão é meio socado por aqui. Acho que vamos suar.
— Pensou em tudo, né?
— Tomara. Rapidinho a gente descobre se deixei algum rabo para puxar.
— Descobre como?
— Ouvindo a voz de prisão!
— E ainda faz gracinhas! Não percebe a gravidade da situação?
— Desculpe, professor, não resisti à piada.
— Uma hora encontram os corpos.
— Com certeza, mas não tão cedo. São dois caloteiros, dois vagabundos. Vai demorar para alguém sentir falta deles.
Começaram a cavar na área iluminada pelos faróis do veículo. O solo era de fato duro, quase pedra, castigava qualquer um que tentasse vencê-lo. O professor transpirava em excesso, e Maicon, embora tentasse parecer atlético, também apanhava feio da ferramenta.
Num determinado momento, pensaram se não seria melhor abrir o buraco em outra parte. Só não fizeram isso porque a cova já ia pela metade, mais um pouco e estaria funda o suficiente para abrigar os dois corpos. O problema é que, quanto mais cavavam, mais pedregosa e resistente ficava a terra.
À beira de uma estafa, o professor parou um minuto para descansar. Sua aparência era deplorável, estava sujo, suado, tinha sede, tudo no seu corpo doía, as pernas, os braços, a coluna, respirava com dificuldade e sentia os calos de sangue e água que brotavam nas mãos. Trabalhou no pesado quando jovem, sabia como usar uma pá ou uma enxada, mas já não tinha fôlego para tanto.
Rezou para que Irene ficasse na casa da filha até de manhã, assim teria uma chance remota de esconder sua excursão noturna. Como explicar que saíra por aí para cavar sepulturas? Tudo estaria perdido se ela resolvesse ligar para casa, ninguém responderia, nem no residencial nem no celular. Ficaria preocupada, talvez até obrigasse a filha a levá-la embora no meio da madrugada.
De qualquer forma, pensou o professor, Irene seria o menor dos seus problemas tão logo a polícia entrasse no caso.
— Pronto! — disse Maicon, jogando a pá.
— Será que dá para os dois?
— Vamos ver.
— Acho melhor cavarmos um pouco mais, só para garantir.
— Pra mim chega. Estamos trabalhando há duas horas.
Abriram o porta-malas e pegaram o primeiro corpo, o de Jorge, mais machucado e mais coberto de sangue ressequido. Parecia possuir membros de boneca desengonçada. Escapou das mãos do professor porque as canelas inexplicavelmente se dobraram sobre os joelhos.
— Ele é muito alto — explicou Maicon. — Tive que quebrar as pernas para que coubesse aí dentro. Acho que foi mais difícil que cavar aquele buraco. Só consegui porque encontrei uma lajota de quarenta quilos.
Arrastaram o corpo até a dianteira do carro e o empurraram para dentro da cova. Com uma aparência assustadora, Jorge ficou amontoado lá no fundo.
— E agora? — perguntou o professor.
— Agora é só jogar barro por cima, mas primeiro vamos pegar a garota.
— Que barulho é esse?
— Barulho?
— Parecem passos.
Voltaram para trás do veículo e, num susto, encontraram o porta-malas vazio. Olharam ao redor e viram um vulto mancando para longe.
— Ela está viva! — gritou o professor. — Ela ainda está viva!
— Porra! — disse Maicon, admirado. — Eu bati com toda a minha força!
Seminua e agonizante, Raquel tentava escapar. Caiu, levantou-se, tropeçou, voltou a cair, estava muito ferida. O professor também tropeçou e caiu durante a rápida perseguição, teve vontade de vomitar logo que conseguiram alcançá-la. Maicon chegou correndo e começou a chutá-la nas costas e na cabeça.
— Pare com isso, rapaz!
— Qual é o problema? Quer que ela sobreviva para nos entregar à polícia?
— Não pode ser assim, é muita crueldade, deve existir outra solução.
— Outra solução o caralho! Eles é que escolheram essa vida. Eles é que quiseram chantagear o senhor. Só estão recebendo o que merecem. Aqui, pegue a sua pá. O senhor é que precisa pôr um ponto final nessa história. Tem o dever de fazer isso.
— Claro que não! Eu não posso acabar com a vida dela.
— Posso saber por quê? Ela não quis acabar com a sua? E qual é a diferença agora? O senhor pensava que ela já estava morta mesmo.
— Me deixe em paz…
— Não tem paz, professor. Vivemos num canil para cachorro louco. Pegue a pá, vamos, faça o que precisa ser feito.
O professor passou a mão pelos cabelos, massageou forte a nuca, contraiu os ombros. Raquel gemia e rastejava. Apesar do escuro, era fácil ver que estava com o corpo lanhado, o rosto retorcido de pancada, os dentes da frente quebrados.
— Deus que me perdoe, essa menina é bem mais nova que a minha filha.
Ela abraçou as pernas do professor, envolveu-o com pranto e desespero, insistia em pedir desculpas, tudo não passava de uma brincadeira de mau gosto, devolveriam o vídeo, devolveriam sim, foi ideia dele, do Jorge, ele me obrigou, me forçou a fazer isso, nunca concordei, nunca, era sujeira, água, não quero morrer, não quero, pelo amor de Deus, me leve para o hospital, água, água…
— Tá com sede, vagabunda?
Maicon abriu o zíper e urinou em cima dela.
— Pare com isso — pediu o professor, que caiu de joelhos e chorou impotente. Não queria que Raquel sofresse, mas ao mesmo tempo compreendia a impossibilidade de deixá-la viver.
— Que droga, professor! Será que sou obrigado a fazer tudo sozinho?
Maicon entrou no carro. Veio em marcha à ré, à toda, o veículo sacolejando sobre as incongruências do terreno, e passou por cima da garota. Repetiu a operação para se certificar de que estava morta de uma vez. Sobrou um emaranhado de braços e pernas e seios cobertos de sangue e poeira. Vamos pagar por isso, murmurava o professor, vamos pagar por isso…
— Ela também foi devorada — resmungou Maicon, ofegante.
— O que… o que está dizendo?
— A menina do meu conto. Depois que crescem e se tornam independentes, as criaturas não costumam poupar seus criadores.