Entrou na secretaria carregando a pasta de couro falsificado, recitou um boa-noite mecânico e pegou um copinho de café na garrafa térmica. Ao contrário da solidão matutina, agora a sala dos professores estava cheia de colegas que conversavam e tumultuavam o ambiente, que verificavam fotocópias de livros e faziam anotações de última hora. Alguns reclamavam da falta de responsabilidade dos alunos, outros previam uma possível defasagem na folha de pagamento e outros ainda discutiam o último escândalo em que se metera uma atriz da TV. Faltavam cinco minutos para o início das aulas noturnas.
Alguém perguntou a Genésio se ele concordava com essa calamidade. Calamidade? Não soube o que responder porque ouvia as coisas embrulhadas, com atenção diluída, era como se as pessoas fossem borrões e rodassem loucas ao seu redor.
Que lástima, pensou. Só um cego deixaria de perceber que estou num dia de dúvida e desconcerto. Sentiu-se exposto diante de seus colegas e de si mesmo. Em vez de solucionar um problema ao fazer o que fez pela manhã, criou outros, muitos outros. Por que saiu correndo do apartamento de Raquel? Por que não consegue se livrar desse peso e dessa angústia que desde então o acompanham? Pior: por que não consegue se livrar da impressão — ou mesmo da certeza — de que será punido por seu deslize, por sua falta de caráter?
Sabia que boa parte desses tormentos tinha origem na sua formação religiosa. Por pouco não se ordenara padre. Às vésperas de fazer os primeiros votos, época em que conheceu Irene, saiu do seminário com a promessa de levar uma vida secular mas não muito distante da igreja. Nisso foi bem sucedido. Sempre colaborou com sua paróquia, batizou e crismou os dois filhos, teria dificuldades se precisasse lembrar o último domingo em que faltou à missa. Infelizmente, o confessionário já não lhe parecia adequado para descarregar seus remorsos. Não teria coragem de contar o que aconteceu nem mesmo a um padre desconhecido. Pelo menos não o que realmente aconteceu, com os pormenores que revelariam o ridículo dos seus atos.
De manhã, com a garota, tentou alongar ao máximo os instantes de prazer, mas tudo terminou de repente, rápido e fora de controle. Daí em diante Raquel já não lhe pareceu tão jovem e bronzeada. Viu que era vulgar e que ria com esgares de animal. Um cheiro desagradável começou a se desprender do corpo dela. Sentiu-se sujo, por isso afastou-se num espasmo. Havia outro espelho por perto, voltou a ver o seu rosto, Genésio Campanelli, 59, pai, avô e professor, faço tudo entre quatro paredes. Desviou os olhos com uma insuportável sensação de desconforto. Embaixo, patético, encontrou o pênis flácido e envolto na camisinha lambuzada.
Deixa que eu tiro, disse ela, e apanhou o rolo de papel higiênico que estava ao lado da cama. Habilidosa e desinibida, deixou-o limpo e “pronto para a próxima”. Por que fiz isso?, lamentava o professor. Enquanto Raquel acendia um cigarro, ele não desejou outra coisa que chegar em casa e beijar o rosto de Irene, retomar seus trabalhos e sua rotina, descansar depois do almoço, ligar a TV e assistir ao noticiário local. Você está ofegante, riu-se a garota de programa. Não vá ter um ataque cardíaco na minha cama, hein? Em vez de responder, ele se levantou e disse que precisava ir.
“Já?”, reclamou Raquel, fingindo decepção. “Quer dizer que vou ficar assim, sem o segundo tempo?”
Deboche, lógico. Provocava-lhe do mesmo modo que ao telefone, mas agora com conhecimento de causa. O professor desconversou, encontrou suas roupas no quarto, vestiu-se. Pegou a carteira — não, ninguém mexeu no seu dinheiro — e separou duas notas de cinquenta. Sentiu-se mal, muito mais. Nenhuma máscara resistia à hora do pagamento. Só um minutinho, pediu Raquel, acho que tenho troco na minha bolsa. Não, deixa, não precisa. Destrancou a porta e saiu para o corredor, desceu as escadas correndo, encontrou o carro e fugiu para junto de sua esposa.
Passou a tarde em silêncio. Explicou à Irene que estava atolado de provas para corrigir, ficaria preso no escritório, não queria ser interrompido por ninguém. Mesmo assim ela trouxe um copo de suco, massageou-lhe os ombros, perguntou se poderia ajudar de alguma forma. Não, obrigado, preciso ficar sozinho. Onde encontrar coragem para olhar nos olhos dela? Suspeitou que fosse lhe perguntar por que a mesa estava vazia se tinha tanto trabalho a fazer. Sou um velho esquecido, só isso. Um velho babão.
— Que é isso, Genésio?
— Ahn?
— Concorda com essa calamidade?
Divertidos, os professores esperavam uma resposta. Adoravam cochichar sobre a vida alheia, a dele incluída. O barulho parecia maior; os borrões, mais velozes. Viu Carol se aproximando, achou estranho, não era o horário de trabalho dela, talvez estivesse substituindo alguém. Virou-se, brusco, e queimou a mão com o café.
— Perdão, minha gente, perdão. É que eu… Olha, acho que não estou num bom dia.
— Ficando velho, Genésio?
— Xi! — conseguiu brincar. — Faz tempo!
Apanhou um guardanapo e secou a mão molhada de café. Mais uma vez olhou para Carol. Ela continuava se aproximando. Outro recado de Irene?
— Desculpe incomodar, professor, mas tem um rapaz aí que quer falar com o senhor.
— Agora?
— Ele disse que é urgente.
Os olhos do professor seguiram o dedo da secretária, que apontava para além da porta de vidro. Lá estava o tal rapaz, sorrindo. Algum aluno que queria reclamar da nota ou justificar suas faltas com a morte da avozinha querida? Decerto não. Era a primeira vez que via a cara do sujeito.
— Tudo bem, Carol. Peça para ele vir aqui.
— Já pedi, mas ele insiste em falar com o senhor lá fora.
Que folgado!, pensou o professor. Disse à secretária que mandasse o moço esperar, falo com ele num minuto. Tomou um último gole do café, despediu-se dos colegas, que ainda riam, e saiu para o corredor.
— Genésio Campanelli? — disse o rapaz, estendendo a mão.
— Eu mesmo. Em que posso ser útil?
— O senhor é professor?
— Isso.
— Hum. Pensei que fosse advogado.
Enquanto o outro ria, o professor passou a mão pelos cabelos, massageou um pouco a nuca, contraiu os ombros. Ainda que não entendesse o motivo da graça, sentiu que algo absurdo começava a acontecer.
— Prazer em conhecê-lo pessoalmente — continuou o rapaz. — Meu nome é Roberto.
Agora sim, um bicho mordeu as entranhas do professor. A simples pronúncia do pseudônimo que utilizou durante a visita a Raquel causou um novo rombo na sua cabeça.
Deteve-se no rapaz com mais atenção e nele descobriu um sorriso falso-simpático, cínico, calculista. Não tinha mais de trinta anos, usava sapatos de bico fino, calças sociais, camisa listrada e cabelos simetricamente penteados. Carregava um laptop debaixo do braço.
— Sei que o momento é impróprio — disse Roberto —, mas preciso falar com o senhor em particular.
— Lamento, estou atrasado para a aula.
— Posso garantir que é um assunto do seu completo interesse. Acho que o senhor já sabe do que se trata.
Roberto se virou e caminhou entre a pequena multidão de alunos que iam e vinham no corredor. Além de cínico e calculista, mexia-se como se fosse dono do mundo.
— Eu viria, se fosse o senhor.
Depois de um segundo de paralisia, o professor o seguiu como um bêbado, sem sentir as pernas. Não, não era o que estava pensando, não podia ser, havia outra explicação para o nome e os modos do rapaz. Entretanto, todas as suas dúvidas se dissiparam quando foi abordado por uma aluna que pedia informações sobre a data e o conteúdo de uma prova. Roberto voltou, grosseiro, e praticamente expulsou a moça.
— A prova? — gaguejou o professor. — Mais tarde, minha filha, mais tarde veremos isso.
— Mas professor…
— Amanhã, sim? Amanhã…
Depois disso, Roberto segurou o braço esquerdo do professor, que não protestou nem reagiu, e entrou com ele no banheiro.
— Enfim sós! — zombou.
Já não havia a falsa cordialidade. As palavras que se seguiram foram frias e objetivas:
— Lembre-se de que há muita gente ali fora e o nervosismo não vai auxiliar o senhor em nada. Tente se controlar, ok? Não grite, não me insulte, não bote tudo a perder e, por favor, peço pelo que há de mais sagrado, cuide para não danificar o meu equipamento.
Abriu o laptop e deu os comandos para a exibição de um vídeo. Embora precárias e um pouco granuladas, as imagens eram nítidas, inconfundíveis. Via-se um quarto pequeno e quase sem mobília. Uma cama dominava o recinto. Com um pouco de atenção, era fácil distinguir, sobre a cama, os cabelos, as nádegas e as pernas de uma mulher nua. Pelo jeito como se movimentava, ficou claro que fazia o possível para não mostrar o rosto. Então um homem grisalho entrou no quarto. Com exceção da toalha enrolada na cintura, também estava nu.
— O que significa isso? — disse o professor, pálido.
— Calma que ainda não acabou.
Hesitante, o homem grisalho aproximou-se da cama. Após alguns segundos — tanto ele quanto a mulher falaram coisas inaudíveis, o vídeo não tinha som —, a toalha se desprendeu e, em vez de cair, ficou pendurada no membro ereto.
— Foi a parte que mais gostei — riu-se Roberto, fechando o laptop.
— O que… o que você… o que vocês…
— Acho melhor parar antes que alguém entre e nos pegue no flagra. Já pensou? Professor universitário vendo pornô no banheiro? Que coisa feia!
— O que quer de mim? Não sou eu no vídeo…
— Devo confirmar com sua esposa?
— Meu Deus… meu Deus… você não vai… não pode…
— Fique calmo, por favor. Só quero que pense um pouco comigo. O que aconteceria se eu hospedasse esse vídeo na internet? Quanto tempo o senhor acha que levaria para todos os seus alunos baixarem o arquivo? E os professores, claro. Aposto que também adoram um filminho de sacanagem.
— Espera, rapaz, não vá embora, vamos conversar…
— Conversar, não. Negociar.
— O que você vai fazer com isso?
— Tira a mão de mim, pô! Quer que eu grite?
— Não… não…
— Então se controla! O acordo é o seguinte…
Calou-se porque dois rapazes entraram para usar o mictório. Riam e falavam alto, trocavam piadas a respeito de alguém que se vestia fora dos padrões da Universidade. No espelho ao lado, Roberto pegou um pente e ficou um tempo alisando os cabelos. Nenhum dos dois olhava para ele, era como se não existisse. O professor abriu a torneira e lavou o rosto, também precisava disfarçar, ficar calmo, mas não podia, não conseguia.
Quando os rapazes saíram, Roberto pôs um bilhete num dos bolsos do professor.
— Aí tem o número de uma conta bancária. O senhor tem até o meio-dia de sexta-feira para fazer um depósito de cinquenta mil reais.
— O quê?! Onde vou arranjar tanto dinheiro?
— Não me interessa.
— Peraí, rapaz, o que é isso?
— Se não fizer o depósito até sexta ao meio-dia, libero o vídeo na internet.
O professor começou a tremer e a respirar com dificuldade. Aproximou-se ameaçadoramente do rapaz, mas foi detido por um empurrão e uma advertência:
— Quer botar tudo a perder, quer? Acha que não fiz um backup do vídeo? Acha que a Raquel não sabe mexer com computadores?
Roberto deu um último sorriso e saiu do banheiro. O professor teve ímpetos de segui-lo, de gritar, de fazer alguma coisa além de ficar ali, parado e impotente, mas tudo já era inútil e comprometedor.
Mais uma vez se olhou no espelho. Não viu o professor universitário nem o selvagem tomado de lascívia. Viu a fragilidade de um homem em ruínas.
— Não é possível, meu Deus, não é possível!
Outro rapaz entrou e o surpreendeu falando sozinho. Sem jeito, o professor pegou a pasta e deixou o banheiro. Por sobre as cabeças dos estudantes que passavam, ainda pôde ver, ao longe, o miserável caminhando com o laptop debaixo do braço. Parou para cumprimentar um sujeito que encontrou no corredor. Trocaram um aperto de mãos, um pequeno abraço, umas poucas palavras.
— Virgem puríssima! — exclamou o professor, que por pouco não levantou voo.
Conhecia, e bem, o sujeito que cumprimentou Roberto. Era um colega seu, um amigo de muitos anos, um ex-aluno que recentemente se tornara professor da Universidade.
Era Maicon Tenfen, o escritor.