Quando chega a hora de fazer o pedido, minha filha sempre escolhe pizza de calabresa, e escolhe meio doida, com os olhos arregalados, batendo palminhas de foca amestrada:
— Calabresa, calabresa, calabresa!
— Tudo bem, guria, seja feita a vossa vontade, pronto, agora pode se acalmar.
Mas eis que chega o garçom com a bandeja e, coisa curiosa, a menina sequer toca na pizza que escolheu. Quatro queijos, marguerita, alho e óleo, tomate seco — até tomate seco, já pensou? —, tudo lhe estimula o paladar, menos a sua desesperadamente desejada calabresa.
Estaríamos diante de um desses insondáveis mistérios da alma infantil? Talvez, mas, depois de refletir sobre o caso, cheguei à conclusão de que o fenômeno é puramente linguístico. A criança não quer comer a substância, mas tão-somente o substantivo, e isso é compreensível. Existe palavra mais saborosa que calabresa? Por isso percebi que, se minha filha nunca gostou de mastigar aqueles pedacinhos apimentados de linguiça, sempre adorou degustar a sonoridade bem temperada da palavra: ca-la-bre-sa. É de dar água na boca.
Que as palavras são mágicas, disso todo mundo já sabe. Abracadabra, por exemplo. Pronuncie e veja os milagres que ela pode operar. Que as palavras são táteis, disso também tomamos conhecimento, graças ao Mário Quintana. Ventania!, sussurrava o velhinho, e logo sentíamos os cabelos agitados no ar. As palavras causam ruídos que nada têm a ver com seus significados? Óbvio. Outro dia, ao ouvir a expressão “rímel e blush”, visualizei um cabo de aço arrebentando e um contêiner afundando no oceano.
Agora, que as palavras são comestíveis, aí teríamos, talvez, uma novidade, e agradeço à minha filha por me ensinar a ver o mundo com “olhos livres”. Já que as palavras vivem em nossas bocas, qual o problema em apreciá-las no que possuem de encanto e sabor? Estrogonofe, por exemplo, é um vocábulo que se embrulha um pouco sobre a língua, mas é muito melhor que gororoba (que causa caretas), e desce bem se bem mastigado.
Segue um cardápio para a degustação do leitor: macaxeira, galinha à manduca, moqueca carioca, quibe cru, batata-palha, cheesecake, bobó de camarão, bacalhau à beneditino, alcachofra, caipiroska (com k) e — lógico, não poderia faltar— calabresa, calabresa, calabresa!
(Crônica publicada na época em que havia jornais em SC).