Quando eu tinha 19 anos e estudava Letras na FURB — curso de menina, diziam-me, e eu respondia que só os muitos machos são capazes de fazer provas de filologia sem chorar — usei as horas vagas para rascunhar as 380 páginas de um romance chamado O Filho do Feliciano. Depois de datilografado, revisado, reescrito, digitado, xerocado e recusado por inúmeras editoras Brasil afora, o livro veio a público no ano 2000, pela EdUFSC, na coleção Ipsis Litteris, dedicada a autores catarinenses, iniciantes ou não.
O objetivo narrativo do romance é bastante simples: desconstruir os mitos que cercavam o nome de Tito Feliciano, da vilaresca e fictícia Freijó (protótipo das pequenas cidades catarinenses), um rapaz simplório que, depois de cometer um crime e amargar alguns anos de prisão, voltou para a terra natal e, graças à manipulação de políticos locais, tornou-se uma espécie de herói justiceiro da comarca. Toda a história é relatada por um jornalista alcoólatra, amigo de infância do protagonista, que se atira ao trabalho numa tentativa de se livrar do vício.
Embora eu não tivesse condições de perceber isso na época, admito que o formato pressuponha provocações um tanto moralistas. Quando um escritor tenciona retratar o mundo pelo ponto de vista de um bêbado, e ainda de um que tenta resgatar a “verdade” e chamar seus conterrâneos à razão, pode saber que estão na mesa as piores cartas de impaciência e descrédito para com a humanidade. No fim das contas, sempre descobrimos que mais vale viver num estado onírico de fantasia do que fincar os pés no lodo da realidade.
— Quando o fato se transforma em lenda — diz o personagem de um antigo filme de bangue-bangue —, publique-se a lenda!
O tema e a estrutura do romance eram ambiciosos demais para as forças que eu tinha na época. Por isso, assim que o livro saiu, passei a sentir vergonha de certas passagens e, por assim dizer, a trabalhar contra a obra, sugerindo que as pessoas não perdessem tempo com a leitura. Mas a verdade é que O Filho do Feliciano está escrito e publicado — com ou sem qualidades, ele já não me pertence. Desse modo, dou a mim mesmo o conselho que antes dei a outros: jamais se arrependa de algo que publicou.
Do lançamento do livro, em novembro de 2000, até hoje, tive que me preparar para reconhecer esse filho precoce e defeituoso. Ele é o que é, e ponto final.