Mesmo que os últimos livros de Paul Auster não tenham sido essas coisas — refiro-me principalmente a 4 3 2 1 —, nunca deixei de pensar n’ O Livro das Ilusões, o maior feito do escritor norte-americano e um dos melhores romances publicados neste século.
A obra conta a história de David Zimmer, professor que perde a família num desastre de avião e, típico nos personagens de Auster, passa todo um ano deprimido e sem ânimo para viver. Sua fossa só terá fim quando assiste a um velho filme do cinema mudo e de repente… sorri!
Sim, sorri. O homem que perdeu a mulher e o filho — e que se sente culpado por ter recebido uma indenização milionária da companhia aérea — conseguiu esboçar um sorriso graças a uma piada filmada muito antes do seu nascimento. Mas quem era o responsável por esse inesperado lampejo de alegria?
É preciso investigar, e é isso que Zimmer faz. Atira-se a uma profunda pesquisa envolvendo o cinema mudo, descobre o nome do comediante que lhe presenteou com um sorriso — Hector Mann — e escreve um ensaio-biografia sobre ele. Publicado o livro, Zimmer recebe uma estranha correspondência. É o próprio Hector Mann, ainda vivo, que deseja conhecê-lo!
Esse é o princípio da história, o mote, as primeiras páginas a partir das quais teremos uma espécie de demanda do Santo Graal coroada de mistérios, surpresas e espelhamentos. “O homem”, diz a epígrafe retirada de Chateaubriand, “não tem uma única e mesma vida. Tem várias. Arranjadas de ponta a ponta. Daí sua infelicidade”.
Há lances de pedagogia existencial nos romances de Auster: procuramos o outro para encontrar a nós mesmos. Embora necessária, é uma busca fadada ao fracasso. Daí uma espécie de fórmula ou receita melancólica oferecida pelos personagens do autor: a melhor maneira de dar sentido a uma vida sem sentido é dedicá-la a projetos inúteis. Escrever um ensaio-biografia, por exemplo.
Já a história de Hector Mann revela que ele resolveu refugiar-se no deserto e produzir filmes para ninguém ver. Filmes para ninguém ver, entende? Mais de 30, e quase todos obras de ficção, com atores profissionais e produção esmerada. Existe afronta maior ao mundo das celebridades e do capitalismo cultural? Existe forma mais contundente de simbolizar o que todos (não) estamos fazendo neste mundo?
Eis a beleza do romance.
Por incrível que pareça, essa história dos filmes para ninguém ver encontra ecos na realidade. Há vários casos de “películas perdidas”, obras que foram realizadas com todo protocolo, mas nunca lançadas comercialmente. O mais famoso envolve Jerry Lewis, o rei da Sessão da Tarde, e um drama (?!) que ele dirigiu em 1972 sobre a Segunda Guerra Mundial.
Chama-se The day the clown cried (algo como O dia em que o palhaço chorou) e trata da vida de um palhaço decadente, o próprio Lewis, que diverte as crianças de um campo de concentração e, como um flautista de Hamelin a serviço dos nazistas, presta-se ao papel de conduzi-las à câmara de gás.
Não bastasse a bizarrice do tema, a produção passou por vários problemas técnicos e financeiros. Lewis enfiou a mão no bolso e, mesmo com a saúde arruinada, levou o projeto a cabo.
Com a impossibilidade de um lançamento em grande escala, o comediante trancou o copião num cofre e, tal como o Hector Mann de Auster, afirmou que o filme só seria lançado depois de sua morte.
Ficção, realidade, duas pontas que se tocam com insistência. Consta que o filme do palhaço será lançado depois de junho de 2024. Não por ser fã de Lewis, mas sim pela mística que envolve o filme, com certeza estarei na primeira fila.