Karl May

Acho que sou um dos últimos leitores do romancista alemão Karl May (1842-1912). Digo isso porque, pelo menos até hoje, nunca encontrei alguém mais novo com quem pudesse conversar sobre as façanhas de Mão-de-Ferro e Winnetou. Com um pouco de sorte, tais conversas se realizam com senhores sexagenários que, provavelmente mais nostálgicos que eu, não se negam a passar horas relembrando as tardes e as noites em que, ao folhear as famosas traduções publicadas pela Editora Globo de Porto Alegre, cruzavam a região dos bandoleiros, talvez nos desfiladeiros dos balcãs, para mais tarde, através do deserto ou pelo curdistão bravio, vencer os sete mares e a cordilheira dos Andes a fim de alcançar, sempre bem armados com a “mata-ursos” ou o rifle de repetição Henry, o oeste selvagem da América do Norte.


Mão-de-Ferro e Winnetou eram o Harry Potter e o Frodo da minha turma. Descobri seus livros aos doze anos de idade. Por ser interno de um seminário franciscano, tive acesso a uma biblioteca cheia dessas encadernações antigas e misteriosas. Os romances de Karl May assustavam pelo tamanho — o mais fininho tinha 360 páginas! —, mas ao mesmo tempo eram convidativos porque, em suas guardas, traziam mensagens cuidadosamente escritas a lápis por antigos leitores: “Li este calhamaço em apenas dois dias. Comecei e não consegui parar. Duvida? Então experimente!”


Além das aventuras, dos tiroteios, dos países e das figuras exóticas, o que mais fascinava em Karl May, acho, era a forma como impregnava suas histórias de verossimilhança através de pequenos truques narrativos. Velho e experiente, uma espécie de Riobaldo que partilhava com o leitor a sua vida de andanças e encantamento, o narrador sempre se enunciava na primeira pessoa e por isso nos dava a impressão — ou mesmo a certeza — de que tudo que líamos era fidedigno e verdadeiro. Sabe-se que o escritor, no fim da vida, enfrentou vários processos sob a acusação de ser realmente salteador, bandoleiro e embusteiro.


O personagem Karl, não por acaso um homônimo do seu criador, adotava um apelido e um estilo distintos em cada continente que visitava. Era Mão-de-Ferro nos Estados Unidos, Kara Ben Nensi no Oriente Médio e Pai Jaguar na América Latina. Quixote bem-sucedido (e por isso pouco trágico), teve muitos sanchos, sempre fiéis ou cômicos, com quem dividia a fama e os perigos da estrada. Óbvios destaques para o indígena Winnetou e o árabe Halef.


É muito difícil, atualmente, encontrar algum dos títulos de Karl May nas estantes das livrarias. Foi esquecido, como esquecidos serão os Tolkiens dessa vida. Há cerca de dez anos, consegui adquirir suas obras completas (mas em estado deplorável) num sebo da minha cidade. De vez em quando, especialmente quando quero melhorar o astral, volto a elas e leio um volume, um capítulo, uma página — sim, é um alegre retorno à infância. Eis a grandiosidade da literatura. Temos um Kafka, temos um Pynchon, temos um Machado e um Graciliano, mas eles nada seriam se não tivéssemos, antes de tudo e em primeiro lugar, um simples e imaginoso Karl May.

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