Cursei parte do primário numa escola multisseriada, onde havia uma única sala de aula. O professor, também único, era uma espécie de pau-pra-toda-obra que, além de lecionar, cuidava da horta, da limpeza, da merenda e das mínimas finanças do estabelecimento. Os alunos também participavam das tarefas, é claro.
Todos os dias, antes de iniciar as atividades letivas, o professor colocava o panelão no fogo e designava alguém para de vez em quando correr até a pequena cozinha e mexer a sopa.
No meu dia de ajudar, lembro que estávamos escrevendo redações sobre um tema bastante incomum: “coisas que quero fazer, mas não posso; e coisas que posso, mas não quero”.
Beleza! Lá eu ia num entra-e-sai bobo e festivo, da classe para o panelão e do panelão para a classe. Escrevia um parágrafo e mexia a sopa, depois mexia a sopa e escrevia mais um parágrafo, e assim a coisa andava, e andava mais ou menos bem, tanto que essa minha alegre correria acabou por me dar uma ideia que, sem hesitar, grafei no finzinho do meu texto.
Mais tarde, como praxe, o professor foi chamando os alunos para frente, que cada um lesse o que escreveu aos colegas. Foi o Sílvio, foi a Fernanda, foi o Sidnei, foi a Valdirene. Não recordo nada do que escreveram, só recordo que todo mundo ria e batia palmas.
De repente chegou a minha vez:
— E a sopa, Maicon — disse o professor. — Tá pronta?
— Ô!
— Então vamos para o recreio, mas primeiro leia a sua redação.
— Não é melhor deixar para depois, professor?
— Melhor por quê? Por acaso não terminou ainda?
Digo em minha defesa que fui obrigado a ler. Dificilmente me lembraria do que escrevi sobre as “coisas que quero fazer, mas não posso”, vai ver desejei viajar pelo mundo ou ganhar um novo brinquedo da Estrela, ou ainda desejei um autógrafo da Tina Turner, sei lá. Por outro lado, lembro perfeitamente das coisas que escrevi no item “posso, mas não quero”.
Foi algo mais ou menos assim:
“Hoje, enquanto mexia a sopa, eu poderia ter cuspido no panelão, mas não quis”.
A lição que tirei do episódio foi decisiva: a palavra assusta. A palavra fere. A palavra destrói. Em especial quem a proferiu ou escreveu. Naquela e nas duas semanas seguintes, tive que comer toda aquela sopa sozinho.