Dormiu umas poucas horas. Acordou quando Irene saía para passar a noite na casa da filha.
— Não vai trabalhar, querido?
— Hoje não tenho aula.
Mentira. Ligou para a Universidade e disse que continuava doente. Não tinha cabeça para enfrentar os alunos. Era possível que no dia seguinte assistissem ao vídeo, e isso bastava para que o professor se sentisse desmoralizado por antecipação. Ainda não sabia o que fazer. Chamar a polícia, jogar-se de uma ponte, entregar suas economias? Tanto faz. Mais cedo ou mais tarde o vídeo acabaria na internet. Achou estranho que os chantagistas não entrassem em contato para lembrar a proximidade do prazo final. Amanhã ao meio-dia, ok? Nem um minuto a mais! Talvez o silêncio fosse uma estratégia de tortura.
— Toda uma vida jogada no lixo!
Ninguém se lembraria do quanto trabalhou, do modo como criou os filhos, da paciência que sempre teve com as pessoas. Como o protagonista de uma tragicomédia, seria julgado e condenado por seus “cinco minutos de bobeira”. Azar, loteria, destino. Entre tantos nomes e números de telefone, foi escolher logo o de Raquel. Lembra que antes tentou o de outra garota, Carol, homônimo da secretária que lhe deixava nostálgico e excitado, mas não conseguiu completar a ligação. Ou as coisas deste mundo são pré-determinadas, ou enfrentava alguma espécie de provação divina.
Passou um longo tempo no escritório, sentado, olhando para a parede. De repente ouviu uma buzina em frente à sua casa. Era Maicon Tenfen, que chegava sem cerimônia. O escritor parecia assustado e falava aos atropelos:
— Ainda bem que encontrei o senhor. Venha comigo.
— Para onde?
— Digo no caminho.
— Que correria é essa, rapaz? Primeiro quero saber o nome completo daquele sujeito.
— Jorge Arlindo da Costa. Agora vamos.
— Espere que vou chamar a polícia. Caio em desgraça, mas levo aquele sem-vergonha comigo. Ele e aquela outra guria à-toa.
— O senhor enlouqueceu? Venha logo, não temos tempo a perder.
— Mas eu não posso sair assim. São quase onze da noite. Tenho que avisar minha esposa…
— Esqueça isso.
O professor foi praticamente arrastado para dentro do automóvel.
— Ei! — admirou-se. — Este não é o seu carro.
— Peguei emprestado.
Saíram cantando pneus.
Como muitos na Universidade, o professor temia as atitudes do ex-aluno. Maicon era imprevisível e desequilibrado, às vezes ria e contava piadas, às vezes passava semanas taciturno, com a cara fechada. Vivia se metendo em confusão por causa dos amigos, poucos, não talvez por lealdade, mas simplesmente porque era intrometido e não sabia quando calar a boca. Corriam boatos de que pelo menos duas vezes fora internado em clínicas psiquiátricas.
Quando o automóvel saiu da cidade, o professor não resistiu à pressão e subitamente explodiu em berros, começou a se descabelar.
— O que está acontecendo, Maicon?
— Calma, professor.
— Diga ao menos para onde está me levando.
— Não sei o nome do local, mas fica a uns cem quilômetros daqui.
— Cem quilômetros? Você perdeu a noção? O que vamos fazer lá?
— Não consegue adivinhar?
— Localizou aqueles dois, é isso? Vamos encontrar com eles para fazer um acordo cara a cara? Mas eu não trouxe o dinheiro comigo. Não seria melhor termos o dinheiro para negociar?
Não houve resposta. Apenas uma troca de olhares e um sorriso revelador.
— O que foi, Maicon? Por que está rindo desse jeito? Ah, não… não é possível… não vai me dizer que… Não, não, nada disso, pode ir voltando, quero que me leve de volta para casa. Eu não vou participar disso. Não vou!
Iriam recuperar o vídeo à força? Não duvidava de que Maicon fosse louco o bastante para lhe propor uma coisa dessas. Era frio e vingativo, demonstrara isso em diversas ocasiões. Uma vez escreveu e publicou um romance às pressas apenas para difamar uma editora caloteira que o havia passado para trás. O professor sabia do caso porque fizera a revisão do texto. Todo um livro somente para justificar duas ou três maledicências contra um desafeto! Não se pode duvidar de alguém capaz de escrever duzentas páginas por ódio.
— Seja sensato, Maicon, vamos voltar. Eu não preciso da sua ajuda.
— Tenho uma dívida de gratidão, já disse. Quando todos me deram as costas e riram das minhas pretensões literárias, o senhor aceitou fazer a revisão do meu romance, de graça, mesmo tendo pilhas de provas para corrigir.
— Fico feliz por sua gratidão, mas nunca pedi nada em troca.
— É por isso que quero ajudar. E não é só por causa da revisão. Quando tentaram me expulsar da Universidade, o senhor foi um dos poucos que ficou ao meu lado e me defendeu. Não posso permitir que aquele gigolozinho de araque acabe com a sua reputação.
Com efeito, o professor acompanhou as perseguições que Maicon sofreu depois que começou a lecionar na Universidade. Colegas mesquinhos promoviam campanhas de difamação entre os alunos, diziam que era um charlatão, que lia apenas as orelhas dos livros sobre os quais falava, estimulavam cartas anônimas e tentavam fabricar abaixo-assinados, marcavam obscuras reuniões de colegiado, passavam informações distorcidas para a pró-reitoria, havia uma mobilização subterrânea para chutá-lo antes que findasse seu estágio probatório.
Fingindo diplomacia, Maicon aguentou tudo em silêncio. À boca-miúda, porém, prometeu que cedo ou tarde se vingaria de forma exemplar, escreveria um romance, um conto, uma crônica, qualquer coisa que justificasse a inclusão de algum parágrafo tosco e fora de contexto para ridicularizar seus inimigos. Era louco, obsessivo. O professor tinha a impressão de que seu ex-aluno não gostava nem um pouco de escrever. Só queria difundir o seu mal-estar.
— Relaxe, professor. Temos um belo trecho pela frente.
O carro deslizava sobre a rodovia escura. Maicon dirigia com imprudência, fazia ultrapassagens forçadas, pouco diminuía nas curvas. O professor de repente se deu conta de que era inútil sentir medo. Depois de tudo que passou nas últimas horas, não se importaria se perdessem o controle e rolassem ribanceira abaixo.
Por um minuto imaginou que era vítima de uma brincadeira, um trote, a data do seu aniversário não tardava. Inclusive, um dos contos de Maicon terminava assim. Alguém colocava um amigo em falsos apuros e depois acendia as luzes de uma comemoração etílica… Claro que não, que sonho, era bom demais para ser verdade. Além disso, ninguém armou a cama para o professor. Agiu pela própria cabeça, enroscou-se nos próprios passos.
Iriam mesmo ao encontro dos chantagistas, haveria violência, talvez Maicon tivesse uma arma no carro. Devagar, esticou o braço e abriu o porta-luvas.
— O que está procurando?
— Nada.
— Quer que eu ligue o rádio?
— Melhor não. Estou com dor de cabeça.
— Não vá pegar no sono, hein! Quero que o senhor fique ligado hoje à noite.
— Por quê?
— Logo veremos. Já contei a história da menina que não conseguia fazer cocô?
— Não que eu me lembre.
— Na verdade é um pequeno texto que acabei de escrever. Ainda não sei se vou publicar, é um pouco escatológico. Gostaria de ouvir?
— Não sei se o momento é adequado.
— Por favor, professor, preciso de uma opinião respeitável.
— Já que é assim…
— Mas também não quero aborrecer o senhor. Se quiser que eu fique em silêncio, é só falar.
— Não, tudo bem. Vá em frente.
— Beleza. Acho que não vai ter muita graça oralmente, mas é mais ou menos o seguinte: a nossa heroína, a menina, vive solitária numa casa enorme e cheia de brinquedos. Além de quase não ver o pai, que está mais preocupado com a empresa e as amantes, faz o máximo para ficar longe das crises e das bebedeiras da mãe. Para complicar um pouco a situação, há esse problema da prisão de ventre. Foi levada aos melhores médicos, submetida aos tratamentos mais caros, inclusive com remédios importados, mas infelizmente continua na mesma. Às vezes fica dez dias sem ir ao banheiro, com a barriga inchada e doendo, uma tristeza. Pior é que a menina de vez em quando sente certa agitação nos intestinos, algo se movimenta ali dentro, com força, o que lhe causa uma grande apreensão. Pensa que é um casal de peixes nadando nas suas entranhas. Torce para que sejam dois machos ou duas fêmeas. Se forem um macho e uma fêmea, estará perdida. Logo na primeira desova, milhares de alevinos vão se desenvolver e ocupar um espaço cada vez maior do seu corpo, seu estômago vai crescer a ponto de se esgarçar e explodir… O senhor está me ouvindo?
— Estou.
— Pois bem. A menina fica preocupada. Resolve contar o que está acontecendo para a mãe. “Besta que nem o pai!”, responde a megera, com um copo na mão. Como a menina insiste em sustentar a teoria dos peixes, a mãe lhe dá uns cascudos e a deixa presa no quarto de dormir. Seja o que for, o negócio na barriga dela começa a borbulhar e escoicear. De uma hora para outra, então, a menina sente uma legítima vontade de fazer cocô. Bate na porta, chama, grita, mas ninguém lhe dá a mínima. Sem condições de ir ao banheiro, decide cagar no quarto mesmo. Pela primeira vez em meses, consegue se aliviar de uma forma total.
— Maicon…
— Não está gostando?
— Isso não vai dar certo. Vamos voltar para casa.
— Calma lá, professor. Deixa eu primeiro terminar o conto. Depois que a menina se limpa com uma folha de caderno, percebe que o bolo fecal é um pouco diferente dos que produzira até então. É compacto e gelatinoso, cheio de nervuras, pulsa como um batimento cardíaco e possui dois olhinhos de recém-nascido. A menina sorri. Esconde o amiguinho numa gaveta para que ninguém o machuque… Escrevi na terceira pessoa, mas estou pensando em mudar para a primeira. O que o senhor acha?
— Prefiro não opinar. Já acabou?
— Claro que não. A melhor parte vem agora. A menina logo vê que a coisa cresce rapidamente e só se alimenta de carne viva. Então começa a caçar ratos para o amiguinho, depois gatos, depois pequenos cães. A massa gosmenta do organismo envolve suas presas e, liberando ácidos poderosos, absorve-as com uma voracidade sem par. O espetáculo é horrendo, mas deleita a menina. A criatura continua crescendo até ocupar todo o espaço disponível no quarto. Um dia a mãe entra para descobrir o que sua filha esconde lá dentro e acaba devorada. A menina aplaude. Depois é a vez do pai, de uma de suas amantes e da empregada doméstica. O monstro cresce mais, sai às ruas, atinge o tamanho de um prédio de quatro andares e espalha o terror pela nação… O senhor não acha que minha história é um pouco hermética?
— Pelo contrário. Está claríssima. Mais direta impossível.
— Que bom. Se as pessoas não entenderem o que quis dizer até aqui, também não vão entender no final. As forças armadas atacam o monstro com tanques e mísseis, mas é o mesmo que nada. Com o tempo, ele aprendeu a devorar tudo o que vê pela frente. Quanto mais o atacam, mais o deixam fortalecido. Trabalhando sob pressão, o serviço de inteligência acaba encontrando a nossa menina. Pedem que procure o monstro e tente acalmá-lo. A criança reluta, mas vai. Teria sucesso em sua missão? O mundo para a fim de assistir à pacificação da criatura. O monstro reconhece a menina e interrompe sua sanha destruidora. Então ela se aproxima com a mão estendida e… Ah, merda!
— O que foi?
— Acho que furou um pneu.
— Bem no clímax?
— Pois é. Parece que estamos num dos meus contos.
Pararam no acostamento. Um dos pneus traseiros estava realmente furado. O professor tentou aproveitar a ocasião para convencer Maicon a voltar. Tempo perdido. Então sua experiência de motorista lhe disse que dentro de poucos minutos apareceria um carro da polícia. Sempre que viajava à noite e se via forçado a usar o acostamento, era abordado pelos patrulheiros que cobriam o perímetro. Seria sua oportunidade de pedir uma carona e acabar com toda essa palhaçada. De novo estava convencido de que entregar o dinheiro era a única coisa sensata a fazer. Se Maicon quisesse ficar zangado, paciência.
— Ô caralho! — disse Maicon, chutando o pneu. — Logo agora?
— O macaco está no bagageiro?
— Está, mas deixa que eu mesmo pego.
— Posso ajudar.
— Então traga a lanterna que tenho no porta-luvas. Por gentileza.
O professor obedeceu, mas não encontrou nenhuma lanterna. Quando voltou para trás do veículo e das luzes de alerta, Maicon, que já tinha o macaco e o socorro, agachou-se perigosamente às margens da rodovia. Carros passavam em alta velocidade, os pneus chiando violentos sobre o asfalto.
— Estamos num local meio delicado — disse o professor. — Você tem aquele triângulo sinalizador?
Antes que Maicon pudesse responder, uma caminhoneta vermelha estacionou a poucos metros de onde se encontravam. Não era a polícia esperada pelo professor. Homens armados saltaram da carroceria e ordenaram que os dois se rendessem. Disseram que não fariam mal a ninguém, só queriam levar o carro.