— Algum problema? — disse Irene. — Você mal tocou na comida.
— Estou sem fome.
— Não gostou do risoto?
— Gostei.
— Então coma mais um pouco. Fiz especialmente pra você.
A filha mais velha estava almoçando com eles. Veio pedir à mãe que tomasse conta do pequeno enquanto ela e o marido iam a um jantar com amigos. Irene demorou a responder. Não queria que o neto ficasse rolando pra lá e pra cá durante a noite.
— Então durma lá em casa — sugeriu a filha. — Assim o impasse se resolve.
O bebê era a vida das duas.
O que diriam se vissem o vídeo? Como reagiriam se aquela porcaria realmente chegasse à internet? Alguma chance de não descobrirem o escândalo? É certo que os filhos, o genro e a nora logo receberiam e-mails maldosos. Talvez tentassem poupar Irene, que não mexia com computadores, mas a ela bastariam os boatos, as insinuações, as maledicências. Apesar dos trinta anos de casamento, o professor não conseguia imaginar qual seria a reação da esposa. Sofreria, por certo, ela e todos os membros da família.
— Seu pai anda tão esquisito ultimamente… Ontem, sem mais nem menos, apareceu em casa com um pacote de café e uma lata de leite em pó. Quando mostrei o estoque que temos no armário, ainda teimou que deixei um recado com a secretária.
Carol! O que pensaria Carol? O que faria? Provavelmente copiaria o arquivo e o enviaria a todas as suas amigas, vejam o vídeo, é imperdível, conheço o velho, ele trabalha comigo e vive cantando as estagiárias, teve o que merecia, o tarado.
O que merecia! Não parava de ouvir o riso e o escárnio dos alunos. Viram o tamanho da piroquinha dele? Viram como gozou rápido? Viram a cara que fez quando a vadia puxou a toalha?
Os professores também se esbaldariam com o espetáculo, principalmente os mais próximos, os que se diziam amigos. Passariam um tempo sem reclamar dos alunos ou da folha de pagamento, sem se preocupar com as atrizes da TV. Suas conversas se preencheriam com conteúdos mais obscenos, haveria uma nova celebridade na praça: Genésio Campanelli, o porn-star.
A coordenadora do curso daria um jeito de encontrá-lo até no fim do mundo, nem que fosse por telefone, só para tripudiar sobre sua desgraça. Mesmo que o professor já estivesse disposto a enfiar a cabeça num buraco, a mulherzinha não perderia a oportunidade de aconselhá-lo a se afastar por uns tempos, a pedir uma licença sem remuneração, a antecipar a aposentadoria com menos benefícios. Para ela seria a glória, enfim se vingaria das divergências que tiveram nos últimos anos.
— O papai parece tão abatido. Será que está doente?
— Não duvido. Eu já disse um milhão de vezes que ele precisa voltar para os remédios. Mas ele se nega, é teimoso. Reclama que a medicação causa insônia.
O triste, reconheceu o professor, é que agiria da mesma forma se isso tivesse ocorrido com um colega. Também faria piadas de mau gosto, mandaria o vídeo para seus amigos, chegaria em casa feliz da vida e contaria essa última fofoca a Irene, que arregalaria os olhos e sentenciaria: o mundo está mesmo perdido.
Não podia permitir que aquelas imagens caíssem na rede. Na noite anterior, logo que se recuperou do choque, pensou em chamar a polícia, mas isso seria burrice, dessa forma apenas anteciparia o escândalo. Devia localizar os chantagistas antes de tomar qualquer atitude.
Em vez de ir para a sala de aula, alegou enxaqueca, pegou o carro e dirigiu até o prediozinho de quatro andares que ficava ao lado do Edifício Cristóvão. Lógico que o apartamento 342 estava vazio.
— Deixa de ser teimoso, pai. Você precisa tomar os seus remédios.
— Vou fazer isso, minha filha, não se preocupe. Primeiro sou obrigado a resolver uns problemas aí.
— Problemas?
— Nada grave. Tenho tudo sob controle.
A cada minuto se sentia mais perdido. Bateu em algumas portas do corredor escuro e abafado, pedia informações sobre a moça que morava no 342. Ninguém sabia de nada, achavam que o apartamento estava desocupado há meses. “Não quero que saibam que recebo homens no apartamento”. Eram profissionais, tomaram todos os cuidados para não serem vistos pelos vizinhos. Instalaram-se apenas para dar o golpe.
Não mexeram no seu dinheiro, mas nos seus documentos. As roupas e a carteira do professor sumiram enquanto tomava banho porque precisavam saber seu nome verdadeiro. Certamente foi seguido enquanto voltava para casa. Descobriram onde morava e onde de fato trabalhava, levantaram seus dados, enfim escolheram a presa.
— Ai, mãe, por que não me falou nada? São problemas no trabalho?
— Como vou saber se ele também não se abre comigo?
— Vocês precisam conversar mais. Assim vou ficar preocupada.
— Não dê bola, filha. Você sabe como é o seu pai. Vive imaginando coisas.
Como não conseguiu nada no apartamento 342, voltou à Universidade para conversar com Maicon Tenfen. Foi o seu pior erro. Abomináveis, as consequências da conversa o acompanhariam até o último dos seus dias. Hesitou antes de procurar o escritor, sujeito indiscreto e pouco confiável, mas era sua única esperança de descobrir o verdadeiro nome de Roberto. Planejou fazer duas ou três perguntas, nada explicaria e em hipótese alguma revelaria a enrascada na qual se meteu.
O problema é que os nervos do professor estavam a ponto de arrebentar. Maicon deve ter percebido isso, pois dispensou seus alunos e o levou para conversar num local reservado. Após duas horas de diálogo, o professor pouco descobriu acerca de Roberto. Em compensação, Maicon ficou sabendo tudo o que se passara durante o dia.
Exausto e angustiado, o professor começou a falar como se estivesse num divã. Primeiro relatou as linhas gerais de sua desventura. Depois do juramento do colega, que prometeu jamais escrever sobre o assunto, o professor passou a entregar os detalhes, da página das acompanhantes ao vídeo que viu no banheiro.
— Puta que pariu! — exclamou Maicon.
— É mesmo — concordou o professor. — Estou numa sinuca de bico.
— Nunca me esqueci do que o senhor fez por mim no passado, tenho uma dívida de gratidão, vou ajudar no que for possível.
— Obrigado, rapaz, mas ajudar como?
— Ainda não sei, talvez possamos começar com a identificação desse tal Roberto.
Maicon possuía enorme dificuldade em guardar nomes de pessoas, defeito que às vezes o colocava em situações constrangedoras. O professor descreveu Roberto de várias maneiras, falou dos sapatos de bico fino, das calças sociais, da camisa listrada, do laptop, de tudo. Quando destacou os cabelos penteados à perfeição, Maicon pulou da cadeira. Sei quem é, vibrou, sei quem é. E explicou que detestava toda e qualquer pessoa que, ao contrário dele, conseguia manter os cabelos alinhados.
O tal Roberto na verdade se chamava Jorge. Embora Maicon não se lembrasse do sobrenome, não seria difícil descobrir algo tão simples. Em voz baixa, acrescentou que possuía certos amigos e contatos que poderiam dar um jeito de localizar o bandido.
Esqueça, disse o professor, de que adianta localizá-lo se a amiguinha dele também pode colocar o vídeo na internet? Minha única chance é pagar pelo menos uma parte do que pediram. Não seja bobo, respondeu Maicon. Se fizer o depósito, logo vão aparecer para pedir mais.
— Puxa, pai, você precisa desencanar um pouco, sair da rotina, sei lá, inventar alguma coisa diferente.
— Diferente?
— É. Vai ser bom para a sua saúde.
— Melhor não, minha filha. Sei o que estou falando.
Quando se despediu de Maicon, já se sentia arrependido da confissão. Todo mundo sabia que o escritor não tinha escrúpulos. Se gostasse da história de alguém, escrevia, publicava e pronto, sequer se daria ao trabalho de trocar nomes e cenários para proteger a reputação dos envolvidos.
Chegou em casa no horário de sempre e fez um esforço sobre-humano para não desmoronar na frente de Irene. Era penoso manter as aparências, até porque ela já farejava algo no ar. Passou a noite em claro, no escritório. Faltou à aula no dia seguinte, mas teve o cuidado de se justificar para que não ligassem para sua casa e assim alertassem ainda mais a sua esposa.
Foi ao banco e verificou suas aplicações. Tinha pouco menos de vinte e cinco mil numa caderneta de poupança, era o dinheiro destinado à entrada do apartamento na praia. Embora não soubesse como explicaria a Irene o sumiço das economias, pagar parecia ser a melhor — a única — alternativa.
Será que os chantagistas aceitariam apenas a metade do que pediram? Impossível responder porque não havia como falar com eles, tudo que Roberto — ou Jorge — deixou foi o número de uma conta bancária. Não, não, bobagem! Maicon tinha razão. Quem poderia garantir que deixariam de importuná-lo mesmo que depositasse os cinquenta mil?
Se fosse corajoso o bastante para meter uma bala na cabeça… Se ao menos tivesse um revólver em casa… Não, que idiotice! Mesmo morto ficaria num beco sem saída. Divulgariam o vídeo no dia do velório, só por desaforo.
— E então, mãe? Fica com o pequeno hoje à noite? A gente não sai desde que ele nasceu. Seria tão bom se pudéssemos ir a esse jantar…
O telefone tocou. O professor deixou Irene e a filha conversando, dirigiu-se ao quarto, atendeu a ligação.
— Professor Genésio?
— Sou eu.
— Aqui é o Maicon, tudo bem?
— Aconteceu alguma coisa?
— Ainda não, mas já descobri o nome completo do Jorge.
— E como é?
— Por enquanto o senhor não precisa saber.
— Passe a informação, por favor. Você não disse que queria me ajudar?
— Breve entrarei em contato.
E desligou.
Irene entrou no quarto. Perguntou quem era ao telefone. Alguém passando trote, respondeu o professor, ríspido. Tem muita gente desocupada por aí.