Eu tinha onze anos e gostava de ler histórias em quadrinhos. Na cidade onde nasci, havia apenas dois ou três lugares que vendiam papel impresso com algum tipo de letra ou desenho. Um desses lugares, o que eu costumava frequentar, era uma espécie de lojão-tem-de-tudo, uma casa comercial que vendia de móveis a eletrodomésticos, de discos a revistas e artigos de papelaria.
Como tinha pouco dinheiro e só podia comprar um gibi por vez, folheava todas as revistinhas e demorava um bocado até escolher a que eu levaria para casa. Num fim de tarde, indeciso entre um lançamento de Tex Willer e uma reedição do Mágico Mandrake, assisti a uma cena que, se na época considerei absurda e um pouco incompreensível, hoje não tenho a menor dúvida de seu caráter simbólico.
Vi uma mulher jovem e que então me pareceu muito bonita acariciando a capa de um LP do Amado Batista. Como ficará claro a seguir, ela não estava nem um pouco interessada na música do cantor: Olhava ternamente para a foto, sorria com doçura e, se agora não me engano, lágrimas perigavam fugir de seus olhos marejados.
— Maria! —uma voz grossa a chamava. — Vamos embora!
Se não fosse o dono dessa voz, um senhor rude e bochechudo que de repente encheu o momento de dramaticidade, eu teria voltado para meus quadrinhos e provavelmente esquecido o assunto. Mas o modo como a chamou, a forma estúpida com que extraiu a coitadinha dos braços do Amado Batista fizeram-me perceber uma tragédia em andamento.
— Vamos logo — repetiu o homem. — Ainda temos que tirar o leite das vacas.
Guri imaturo, demorei um pouco para entender que não era o pai dela, mas o marido. Sempre abraçada ao LP, objeto que acalentava com carícias de amante, a mulher se aproximou do velho e suplicou:
— Vamos comprar?
Ele respondeu com uma bronca.
— O que você quer com essa coisa?
— Não é coisa. É do Amado Batista.
— Se nem temos toca-discos em casa…
— Não é preciso ouvir.
— Comprar um disco para não ouvir? Vai fazer o que com isso, então?
— Guardar para quando eu tiver um aparelho de som.
— Deixa de ser boba. Isso não é futuro pra ninguém. E custa uma fortuna.
E continuaram a discussão no meio da loja, para quem quisesse ouvir, a ponto de uma das vendedoras, depois duas e por fim todas as três tomarem partido da mulher. Por que ele não comprava o LP?, perguntavam. Porque gosto dela, respondia o homem. Forma estranha de gostar, hein? Não veem que ela é fraca das ideias e que eu preciso cuidar da cabeça dela?
— Melhor cuidar da sua — ouvi um cliente cochichando com outro.
No começo imaginei que aquelas mulheres só estavam interessadas na comissão da venda, mas logo ficou claro que se tratava de uma sincera manifestação de solidariedade feminina. Tanto que, quando as coisas começaram a esquentar pra valer, as três resolveram fazer uma vaquinha e presentear a esposa do carrasco com o LP do Amado Batista. Foi a gota d’água:
— Minha esposa não precisa de presentes, ainda mais de gente como vocês.
Segurou o braço da mulher — tinha uma força de cavalo, pois ela rapidinho largou o LP — e tratou de levá-la para fora. Entraram numa picape Ford cor-de-laranja, o emblema motorizado dos pequenos proprietários rurais. Pelo jeito como ele bateu a porta e pela forma dolorosa como ela se esforçava para conter os soluços, contas seriam acertadas quando chegassem em casa.
Indignadas, as vendedoras ficaram um longo tempo debatendo a questão. Quanto a mim, finalmente escolhi a revistinha do Mandrake e apaguei a cena de minhas preocupações. A lembrança desse dia só voltou quando me tornei adulto. Cada vez ouço algo sobre o Amado Batista, penso com nostalgia na pobre mulher que o amava.
O que será que aconteceu com ela?
Fiquei sabendo que, após a colheita, essa senhora voltou na tal loja e se presenteou com um toca disco e o LP do “Amado”.