Era uma vez…

Mal abriu os olhos, o E percebeu que o R e o A, seus vizinhos de palavra, aparentavam uma estranha pigmentação.


— Onde estamos? — disse, esticando-se na base para enxergar melhor as adjacências.


— Não percebeu ainda? — respondeu o U, tão antipático quanto o M e o outro A que o acompanhavam. — Estamos na tela de um computador.


— Ô saco! — exclamou o V de “vez” (o segundo E ficou calado, porque era mudo, enquanto o Z, esquisitão e insociável, tentava se virar para a direção oposta). — Tela de computador é dose. Tenho alergia a toda essa luz que nos cerca. E depois morro de medo de levar um choque.


— Deixa de ser fresco! — gritou o M, que se achava superior pelo fato de possuir mais pernas que qualquer outro individuo do alfabeto. — No computador somos perfeitos, temos caracterizações mais diversificadas, mais dinâmicas. E depois, junto à mensagem que formamos, viajamos para longe, muito longe.


O V era meio esnobe. Elegante, sem dúvida, mas frágil devido ao equilíbrio precário. Mexeu os braços num sinal de deboche:


— Tudo bem, tudo bem. Com certeza somos mais chiques, mas perdemos muito do glamour de nossos pais e avós. Pensem nos livros, nos alfarrábios, nos palimpsestos. Que bela aristocracia! Pensem nas letras capitulares da Idade Média. Aquilo sim é que era luxo!


— Que tal pararmos com essa discussão inútil? — tomou o primeiro E. — Alguém poderia me explicar quem é aquele sujeito?


— Sujeito? Que sujeito?


— Aquele ali, ó. Bem na nossa frente.


Um pouco intrigadas, as letras lançaram olhares para além do vídeo em que se encontravam. Viram uma face enorme, com grandes lábios e nariz, óculos de aros finos e testa larga, enrugada, sem um pingo de cabelo.


— Oh, Deus! — exclamaram os AA, trêmulos de pavor. — Esse monstro vai nos devorar.


— Vai nada — disse o V, que ficou engraçado e meio obsceno com as mãos na cintura. — Ele é apenas um escritor.


— Um o quê?


— Um escritor. Um sujeito tolo e cheio de ilusões que foi encarregado de colocar a gente no papel. Quer dizer, na tela do computador.


— Nossa! Que olheiras profundas ele tem.


— Não são olheiras. Acho que ele está com fome. Dizem que pagam muito mal a esse tipo de gente.


— Vai ver está sofrendo de algum bloqueio criativo. Só três palavras em todo esse tempo. O que será que está tentando escrever?


— Provavelmente uma narrativa. Começou com o mais comum dos lugares comuns.


— Não, não. Vejam! Parece que desistiu do texto. Começou a fazer caretas e dar socos no teclado.


— E agora — ai, meu Deus! — está mexendo no mouse.


— Ui! Que arrepio na espinha. O que aconteceu? Todos nós ficamos repentinamente brancos.


— E a página ficou negra. Sabem o que isso significa?


— Que ele vai usar o delete?


— Ok, rapazes! Foi bom conhecer voceeeiiiiiiiiiiissssssss!!!


E lá se foram as letras, para o limbo do esquecimento, levando consigo o conteúdo das míseras palavras que formavam. Letras tão perfeitas, tão sofisticadas, tão abrangentes. Mas tão efêmeras também.

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