Pra que escrever ficção?

Peça teatral baseada na história de Kafka e a boneca viajante

Gostaria de responder a pergunta proposta pelo título com uma das muitas historinhas curiosas que encontrei em Desvarios no Brooklyn, um romance do escritor americano Paul Auster.


É provável que não seja um dos melhores títulos do autor, principalmente se comparado ao Livro das Ilusões ou à Cidade de Vidro, mas se salva graças à pequena narrativa que segue.


É sobre Franz Kafka, o tcheco, aquele de A Metamorfose, tido como um dos maiores renovadores da novelística do século XX. Eis o paradoxo pelo qual discutimos a ficção: ao que tudo indica, não se trata de um caso ficcional.


Em seu último ano de vida, Kafka finalmente abandonou Praga — projeto que tinha o desejo de realizar havia muito tempo — e se mudou para Berlim, onde passou a viver com Dora Diamant, uma jovem de 19 anos por quem estava apaixonado.


Apesar da saúde abalada e dos graves problemas que a Alemanha enfrentava na época (hiperinflação, carestia e atribulações políticas), parece que nosso escritor viveu feliz os seus últimos meses.


Quase todas as tardes, saía de casa para dar uma volta no parque. Certo dia, num susto, avistou uma menina que chorava copiosamente. No que se aproximou para perguntar o que havia acontecido, ela se acalmou um pouco e explicou que acabara de perder a boneca. Com o intuito de consolar a garota, Kafka decidiu que deveria usar os seus dotes de ficcionista:


— Você não a perdeu — disse. — Na verdade, ela saiu para viajar.


— Como é que você sabe?


— Sou um velho amigo da sua boneca. Ela me escreveu contando tudo.


— Você tem a carta aí?


— Esqueci em casa, mas prometo que trago amanhã.


Imediatamente, Kafka voltou para seu escritório e, com o mesmo esmero e capricho que dedicava a seus contos e romances, inventou uma carta para a menina. Conforme o combinado, encontrou-a no dia seguinte, sentou-se num banco do parque e leu em voz alta a suposta mensagem da boneca, que se desculpava pelo sumiço, claro, no fundo amava muito a sua dona, mas decidiu que chegara a hora de sair e conhecer o mundo.


O mais impressionante dessa história é que Kafka repetiu a operação todos os dias durante as três semanas seguintes. A boneca cresce, entra numa escola, conhece gente nova, faz amigos, arruma um namorado. Vive tantas aventuras que, apesar da saudade, está impossibilitada de voltar para casa.


“Pouco a pouco, Kafka vai preparando a criança para o momento em que a boneca desaparecerá de sua vida para sempre (…) Descreve o jovem por quem ela se apaixona, a festa de noivado, o casamento no interior, até mesmo a casa onde a boneca e o marido vão viver. E, por fim, na última frase, a boneca se despede de sua antiga e amada amiga.”


Para terminar de responder a pergunta lá do título, resta dizer que a menina, agora dona de uma ficção para substituir sua perda, teve enfim condições de curar sua infelicidade e voltar a viver em paz.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *