O Homem Que Pronominava

De todas as manias de Telorêncio Catanduva de Aguiar, nenhuma se igualava à sua obsessão pelos pronomes e pela correção gramatical. Os colegas de trabalho o consideravam um chato de polainas e abotoaduras (sim, Telorêncio as usava!), pois a ele não bastava se exibir com a próclise, a mesóclise e a ênclise: sem modéstia e sem constrangimento, distribuía lições gramaticais aonde quer que fosse.

Gostava de corrigir os outros em público, pegava no pé de todo mundo, inclusive dos mortos, sequer poupava Vinícius e Jobim:

— “Eu sei que eu vou te amar”, que vergonha! Espanta-me que tal composição seja apontada como um clássico da música popular brasileira.


— Mas por que, homem de Deus?


— Ora, por quê! Concentra-te na colocação do pronome e véras. Não pode ser “eu sei que eu vou te amar”. Deve ser “eu sei que te vou amar” ou então “eu sei que vou amar-te”.


— Vou a Marte? Xi, Telorêncio, isso tá parecendo uma viagem espacial, viu?


Além dessa sua mania dos pronomes e da segunda pessoa do discurso, não perdia a oportunidade de flexionar os plurais com sua empáfia de fidalgo, nem mesmo quando se encontrava em algum boteco da periferia:


— Dá-me duas xicarazinhas de café, por obséquio.


— Cumé que é?


— E dá-me também duas colherezinhas ,sim?


— Que papo é esse, meu?


— Conceder-te-ia todas as explicações, meu bom jovem, se tempo houvesse. Mas tempo não há, e é pena. Preciso alimentar-me e ir-me logo daqui.


Certa vez foi assaltado na rua. Um moleque surrupiou sua carteira e saiu à toda. Desesperado, Telorêncio também começou a correr e gritar.


— Peguem-no! Detenham-no! Impeçam-no de fugir!


Os verbos bem pronunciados e ainda por cima enclíticos deixaram o guardinha que passava em dúvida sobre o que realmente estava acontecendo. Riu em vez de deter o meliante.


Um dia Telorêncio ouviu dizer que a Mirtes, uma das meninas do telemarketing (Arght!, como ele odiava esses estrangeirismos desnecessários!) adorava poesia. Não perdeu tempo e se aproximou da moça para confirmar.


— É verdade, Seu Telorêncio, a poesia é tudo na minha vida. Principalmente a do Amado Batista, a do Bruno e Marrone, a do Zezé di Camargo e Luciano.


— Como?


— As letras das músicas deles, Seu Telorêncio! Não são verdadeiras poesias?


Era o fim. O mundo estava mesmo perdido. Telorêncio foi ficando cada vez mais acuado e desgostoso. Não conseguia se adaptar à ignorância das pessoas.


Para usar uma sintaxe de colocação cara à sua personalidade, devemos dizer que as forças iam-se-lhe findando sem tréguas ou piedade. Envolto por uma profunda depressão, cometeu o erro de imaginar um paraíso cheio de anjinhos que se expressavam num português castiço e gramatical.


Se matou. Perdão: matou-se! “Matou-se a si mesmo suicidando-se a si próprio”, como fizeram questão de redundar, aliviados, seus colegas de trabalho.


Deixou um bilhete:


“Adeus, mundo cruel! Não me devo resignar diante de tua parvoíce. Deixo-te pela porta dos fundos, mas de fronte altaneira.”


Incorrigível? Sê-lo até o fim, eis o lema de Telorêncio.

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