Ai de nós, cronistas, que nos atrevemos a mostrar a face e o texto nos periódicos da vida. Por escrevermos no calor da hora, ficamos à mercê das falhas e dos equívocos mais estapafúrdios. Para exemplificar o que digo, citarei um caso famoso: Olavo Bilac.
Para quem não sabe, o príncipe dos poetas parnasianos foi um dos articulistas mais lidos durante a belle époque tupiniquim. Substituto de Machado de Assis na Gazeta de Notícias, trabalhou nos maiores jornais do Rio e de São Paulo. Superculto, viajado, escreveu com brilho sobre temas que ainda hoje estão em pauta: saúde pública, crueldade contra velhos, maus tratos a animais, emancipação da mulher, literatura e cultura em geral. Quando tratou da Guerra de Canudos, porém …. que desastre!
Numa crônica publicada em dezembro de 1896, reproduz a voz das elites latifundiárias ao lamentar que os milhares de sertanejos amotinados no sertão da Bahia não se contentassem em peregrinar pelos desertos e em comer gafanhotos como São João Batista. E prossegue, duro:
— Os fanáticos de Antônio Conselheiro “não podem passar sem pão, sem carne, sem cachaça, e sem mulheres. E, pois, saqueiam vilas, assolam as aldeias, matam os ricos, escravizam os pobres, defloram raparigas, e assim vão vivendo bem, bem combinando os sacrifícios do viver religioso com as delícias do comer à tripa forra.”
No mesmo texto, queixando-se da lenga-lenga burocrática surgida com a guerra, exige das autoridades uma ação mais incisiva: “Em qualquer parte do mundo, esse pessoal seria baleado, corrido a pedra e a sabre, sem complicações, sumariamente.” E não termina a crônica antes de execrar a “imprensa indígena”, isto é, aqueles poucos jornais que não divulgavam o Conselheiro como fanático, mas como político restaurador da monarquia.
Em março de 1897, num tom fúnebre e hiperbólico, Bilac chora a aposentadoria de Machado de Assis, o mestre, que poderia usar a sua coluna para narrar a “grande desgraça” com tintas mais sóbrias e concisas. Mas que “grande desgraça” era essa? A notícia de que o Coronel Moreira César, o mesmo que meses antes transformara Desterro em Florianópolis sob a enxurrada de sangue de Anhatomirim, já estava debaixo de sete palmos, sentadinho no colo do capeta e comendo capim pela raiz.
Mas em outubro do mesmo ano pôde acender todas as luminárias da sua crônica para comemorar a desafronta: “o Arraial maldito foi desmantelado”. Fazendo piadinha com a “imundície das jagunças” subjugadas, esquecia-se o poeta, e com ele o resto do Brasil, que aquela foi uma guerra sem prisioneiros. Mulheres, velhos e crianças, todos morreram fuzilados ou degolados.
Interessante, porém, é que o próprio Bilac tinha consciência de que pudesse estar a serviço de algo no qual não acreditava. “Não há morte para as nossas tolices!”, escreveu em 1901. “Nas bibliotecas e nos escritórios dos jornais, elas ficam, as pérfidas”, catalogadas; e lá vem um dia em que um perverso qualquer, abrindo um daqueles abomináveis cartapácios, exuma as malditas e arroja-as à face apalermada de quem as escreveu…”
Hoje, querido leitor, querida leitora, sou esse “perverso qualquer”. Amanhã, provavelmente, serei o dono da tal “face apalermada”. Ai de nós, cronistas, ai de nós!