Mostrar ou não mostrar: eis a questão

To be or not to be: that is the question

Talvez a grandiosidade de certas obras-primas da literatura não esteja naquilo que dizem ou mostram, mas nos detalhes — inúmeros e aparentemente sem importância — que insistem em esconder dos leitores.

Kafka nos diz que Gregor Samsa acordou de sonhos intranquilos transformado em inseto, mas em momento algum se preocupa em revelar que sonhos intranquilos foram esses. Por acaso um devaneio febril envolvendo a mãe e os outros parentes egocêntricos do personagem? Por acaso o próprio processo de metamorfose pelo qual passou até perder as feições humanas?

Eis uma cogitação que fica depois de finda a leitura, uma prazerosa tentativa de preencher as elipses e desvendar as omissões nada inocentes do narrador.

Também Edgar Allan Poe se valeu do mesmo expediente. Em O Barril de Amontilado, um de seus contos mais conhecidos, o personagem-narrador nos informa que sofreu ofensas e insultos de um certo Fortunato — a quem destinará um fim cruel e exemplar —, entretanto não detalha a questão e nunca esclarece os pormenores que o levaram a jurar vingança.

— Eu deveria não só punir — diz o assassino —, mas punir com impunidade.

Isso, claro, nos faz supor ofensas de dimensões universais. Em alguns momentos, porém, o tom afetado de suas palavras nos leva a crer que o personagem-narrador seja louco e que os insultos de Fortunato não passaram de reles brincadeiras entre amigos. É essa ambiguidade, esse dado escondido, que nos faz vibrar com o conto de Poe, mesmo depois de fechado o livro.

Falar em livro, vale a pena notar que muitos personagens famosos leem sem que possamos saber o quê. É o caso de Hamlet, quiçá o mais inseguro – e por isso o mais significativo — dos personagens ocidentais. Na segunda cena do segundo ato, Hamlet entra com um livro na mão. Polônio o questiona:

— O que é que está lendo, meu Príncipe?

— Palavras, palavras, palavras — responde o protagonista.

Quem me dera saber quais são essas palavras! Quem me dera descobrir o que lia, na visão elizabethana em que a peça foi concebida, um príncipe dinamarquês do século XII obrigado a fazer justiça sobre o corpo do pai assassinado.

Outros autores foram menos sovinas quanto aos livros preferidos de seus personagens. Flaubert não só detalha as leituras de Ema Bovary como deixa claro que elas é que são o motivo de sua desgraça. O mesmo faz Tolstói com Ana Karenina e Eça de Queirós com a Luísa prima do Basílio.

Já Machado de Assis, shakespeariano até a medula, também faz questão de nos esconder as leituras de Capitu (que lê freneticamente, apesar de ser brasileira e oriunda de uma classe subalterna). Aliás, Machado não oculta apenas as leituras, mas tudo o que pensa e sente a maior das adúlteras do século XIX. Maior porque, ao contrário dos seus símiles europeus, possui uma grande possibilidade, graças ao que o autor NÃO nos mostra, de nem mesmo ser adúltera.

As grandes obras, repito, talvez valham por aquilo que deixam faltar. Já que escrevi demais e não faço a menor ideia de como terminar esta crônica (e numa vã tentativa de fazer minha escrita valer alguma coisa), deixo-a portanto sem final.

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