Durante algum tempo, desejei escrever um romance policial em que o mordomo fosse o culpado. Certamente pelo medo de não estar à altura de tema tão original, sei que jamais darei cabo do projeto. Mesmo assim, de vez em quando me surpreendo a pensar em como formularia o caráter e as motivações do meu criminoso, porque todo mundo sabe que o mordomo — membro de uma espécie em extinção — é um bicho complexo.
Alto, magro, grisalho e narigudo, empertigado no fraque asseadíssimo, culto e com um eterno quê de superioridade, o mordomo nunca dorme, nunca come, nunca sorri e nunca vai ao banheiro. Como saber o que se passa na sua cabeça misteriosa? Seria capaz de matar por inveja? Por vingança? Seria um serial killer foragido de Londres que se instalou no seio de alguma família blumenauense com fumaças de nobreza?
Provável que não.
Tudo isso soaria falso porque o mordomo, no melhor dos sentidos, é sempre perfeito. Melhor seria se ele fosse o herói. Esse expediente, aliás, já foi usado com sucesso. Batman e Robin estariam perdidos sem a fidelidade de Alfred. O Drácula interpretado por Christopher Lee não teria voltado tantas vezes se a bilheteria não fosse boa e o mordomo não estivesse ali para ajeitar sua ressurreição. Bentinho jamais suspeitaria de Capitu se, em vez de escravos e agregados, tivesse um austero mordomo vitoriano.
Ninguém consegue o passado do mordomo, por isso ele surpreende a cada vez que tira suas luvas de pelica. Capaz de recitar Shakespeare de caba a rabo e de dar palpites decisivos sobre o mercado de ações, ao menor sinal de perigo abandona seus trejeitos aristocráticos e se revela um mestre do Kung Fu. Embora seja notório que nunca teve namorada, conhece profundamente a psicologia das mulheres. O patrãozinho rico e azarado no amor sempre lucra com seus conselhos.
O mordomo é, antes de tudo, um forte.
Todo mundo deveria experimentar o privilégio de ter um mordomo, nem que fosse por uma semana. Imagino como seria meu dia. Em vez de ser covardemente arrancado do sono pelos trinados metálicos do despertador, meu mordomo abriria as cortinas e diria, jovial:
— Belo dia, Patrão Tenfen. Ótimo para um passeio até o seu local de trabalho, não?
Dali eu passaria ao meu banheirinho de azulejos quebrados e encontraria tudo em ordem, as toalhas secas e o sabonete limpo de cabelos. A mesa já estaria lindamente posta para o breakfast.
— O que prefere, Patrão Tenfen? Pão dormido ou ovos remexidos? Ou melhor, ovo remexido. Sobrou apenas um do jantar.
— Pensando bem, James, estou sem apetite hoje. Acho que já vou indo para o trabalho. Apronte o carro, por favor.
— Impossível, senhor. Seu Volkswagen 86 está com o carburador danificado.
— Por que não chamou o mecânico?
— Tentei fazê-lo, senhor, mas seu crédito está em baixa na cidade e sua conta bancária continua no vermelho. A propósito, senhor, verifiquei suas finanças e constatei que, como se diz aqui no Brasil, a “coisa tá braba”. O senhor precisa tomar uma atitude.
— O que sugere?
— Suas crônicas no jornal, senhor. Está na hora de pedir aumento.
Eis a única desvantagem do mordomo. Às vezes ele é menos sutil que um cronista de jornal.